2° colocado no Concurso de Contos: Pupillomancia

Sou uma máquina de disparar bom dias e sorrisos falsos. Programada para atender telefonemas, checar agendas, negar convênios e elevar ou baixar a temperatura do ar de acordo com a sensibilidade local. Na TV a apresentadora repuxa o tempo para trás das orelhas, retém a flacidez de suas pernas sexagenárias dentro da minissaia e eu aqui, nesse buraco negro matinal, esperando que alguém numa quinta dimensão mande mensagens em código morse através da poeira do meu tédio.

O preço do resgate é alto demais, as senhorinhas concordam que o sódio embutido nos alimentos é o mal do século. Um velho rouco alega que é o crack e a internet que transformam jovens em zumbis. Um garoto derruba a pilha de revistas e meu olhar fura seu tampão por trás dos óculos.

O Dr. Afrânio vai demorar?

É por volta das 10:30 que começam a perguntar.  Ele pensa que ninguém entende o porquê da letra trêmula na receita.

Ligo para o meu irmão, Dr. Afrânio Brayner, e escuto o barulho da porta batendo. Entra na recepção esbaforido, solta um bom dia apressado como se fosse um neurocirurgião chamado para uma emergência. Esse era o grande sonho dele, mas preferiu herdar a clientela do sogro oftalmologista. Entro em sua sala e lhe passo o itinerário.

Dr. quer um chicletinho?

Ele me obriga a chamá-lo de doutor, formalidades.

Doutor, mas dá pra sentir daqui.

Ele estende a palma da mão.

Começou cedo hoje, hein?

Pode mandar o primeiro, ordena Dr. Afrânio, sem nem me olhar na cara.

Dois anos que sou recepcionista nessa bodega. Alterno os horários com Sheila, que também é da família. É o principal requisito para o cargo. Minha cunhada não quer correr o risco de ter “uma vagabunda qualquer” seduzindo seu marido. An-rran. Sheila é sobrinha dela, e por ser uma mulher casada é de confiança. Sheila acha que é a rainha da discrição.

Sheila, vamos almoçar?

Ah não, já estou comida.

Me comove sua ingenuidade e  preocupação com meu irmão.

“Dr. Afrânio está muito mal hoje. Coitado do Dr. Afrânio, trabalha tanto”.

Eu quero mais é que ele se foda, tenho vontade de dizer, mas Sheila tem a boca grande e eu tenho parcelas a pagar no cartão de crédito. Mas justamente por ser a recepcionista ideal, de acordo com os critérios da minha cunhada, dou-me pequenas liberdades. Tirar o telefone do gancho é uma delas. Ninguém entende o suplício que é escutar o toque do telefone até se tornar recepcionista.

Dilato pupilas e aproveito para desenvolver meus poderes premonitórios. Afrâninho não herdou o dom, segundo minha avó, somente as mulheres da família herdam. Peço para os pacientes manterem os olhos bem abertos e demoro a oferecer o guardanapo para que enxuguem o rosto. Vejo mortes e reconheço medos nos olhos de alguns quarentões e desejos nos olhos das mocinhas míopes. Nada que emocione. O que me interessa mesmo são as retinas opacas dos velhos, multidões, catástrofes, filmes estrelados por Nicolas Cage. Não posso conversar sobre isso com qualquer pessoa e depois que minha avó morreu ficou até chato, não tenho ninguém pra compartilhar as coisas que vejo. Só me resta escrever. Só me resta Deon, o segurança recém contratado, Dê-on.  

Dr. Afraninho dispensou o antigo segurança porque

Era um maconheiro safado, não colocava medo em ninguém, segurança branquinho de olho azul, parece forte, mas é só banha.

e contratou o Deon porque

É negão e negão impõe respeito.

Sheila tem fixação em ter filhos com olhos azuis, por um azar do destino não puxou à família da mãe onde todos têm olhos claros, se lamenta feito uma besta. Entendi a escolha de meu irmão quando ela deu a notícia de que o Dr. contratou o rapaz “de cor”. Como assim “de cor”, que cor? E ela me respondeu enrugando o nariz e mostrando os dentes

Ahh, assim meio moreno, sabe?

 Deon é estudante de direito durante a noite e trabalha como segurança durante o dia, já fez o inverso quando estudava matemática, mas descobriu que era fera com números somente nos reles exercícios do 2º grau. Depois de repetir por duas vezes em cálculo 1 desistiu da nada promissora carreira de matemático. Começou fazendo bicos em eventos e casas noturnas, depois em lojas de dondoca e restaurantes.

Meu irmão resolveu contratar seguranças após o terrorismo diário de minha cunhada. Ela estava alarmada com a onda de assaltos à clínicas e consultórios médicos. Informei  ao Deon que seu trabalho provavelmente seria temporário, Dr. Afrânio se mudará em breve para o recém construído The Square Park Office. Sheila pira quando toco no assunto, creio que se imagina acolhida pela imensidão asséptica do hall de entrada, o som dos seus saltos ecoando no mármore Carrara, passando cartãozinho na catraca. Deus cuida dos iludidos com velhos ditados e tapinhas nas costas. Em um ano Sheila odiaria aquele lugar. Pena que ela não terá tempo pra isso. Nem eu.

Dr. Afrânio abre a porta do banheiro e me flagra com Deon. Tento sugar o fio de saliva entre nós, mas soluço um riso contido e a baba escapa sem constrangimento. A última vez que meu irmão me olhou desse jeito foi quando expulsou cinco garotinhos do meu quarto de criança. Jogávamos dardos no alvo pregado à porta e ao abri-la de sopetão levou um dardo na cara. Me achou uma putinha por ter tanto moleque comigo. Bem, agora não restam dúvidas de que evoluí.

Ele me puxa pelo braço, nem tive tempo de me levantar, vou aos tropeços enquanto Deon tenta me defender ao mesmo tempo em que se ajeita dentro da calça. Tenta argumentar, mas o Dr. não quer saber, fica grunhindo xingamentos, sua puta, o dedo na minha cara, nos empurra até a saída. É final de expediente, sexta feira, já era pra ele estar jogado no sofá de casa. Deon sobe na moto e diz que não pode me dar carona porque não tem um capacete extra. Te pedi alguma coisa, cara? Ele balança a cabeça negativamente. Volto para pegar minha bolsa, por sorte Afraninho está no banheiro. Entendi. Ele sempre teve prisão de ventre durante as viagens, não curte banheiros alheios. Vou no estacionamento com as chaves de casa na mão, resolvida a escrever na lataria nova do Dr. “sou puta mesmo”, mas percebo uma silhueta dentro do carro. Bato na janela.

Oi Sheila, tudo bem? Diz pro Dr. que segunda eu venho acertar as contas, sabe? Talvez com ele, talvez com a minha cunhada. Depende da oferta. Boa noite pra vocês.

Autora: Natasha Fernanda dos Santos Zanetti, pseudônimo Zemina.

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