Concurso de Contos: Confira quem é a vencedora do 3º lugar

O verbete

 

Aurélia

Por meses, esteve imersa em um debate interno complexo; há noites já não dormia bem, atormentada por dúvidas cruéis. Tinha sonhos terríveis, e acordava aos gritos, encharcada de suor, desorientada, sem saber o que fazer; quando recobrava o juízo, as dúvidas cresciam ainda mais.

O ano era 2022, e a editora havia decidido, em abril, publicar um novo dicionário; o prazo era, no máximo, o início de setembro: queriam que ele já estivesse nas livrarias caso alguém – em desespero – resolvesse consultar alguma outra fonte além de um mapa astrológico ou um jornal de extrema direita.

Márcia (Marcinha pros íntimos), enquanto a lexicógrafa respeitada que era, havia sido convidada para compor o dream team de revisão e redação, visto que a editora tinha a pretensão de que a publicação fosse revolucionária, e deixasse no chinelo (virado de sola pra cima) Aulete, Houaiss, Michaelis, e o que mais aparecesse pelo caminho.

Com essa publicação, prometiam unir brasileiros, portugueses, angolanos, moçambicanos, e quem mais tivesse a sorte ou o azar de falar a nossa língua; talvez fosse arrogante, mas nada como deixar uma meta aberta, e, depois, ainda por cima, dobrar a meta.

Marcinha estava particularmente encarregada de neologismos e termos revisitados e ressignificados recentemente, e vinha desempenhando muito bem sua função, obrigada. Passou com desenvoltura por algoritmo, e mostrou sua maestria com comunismo. O engasgo vocabular começou mesmo quando chegou na letra F; se sentiu travada por um tempo, então resolveu passar para as próximas letras.

É verdade que teve alguma dificuldade quando passou novamente por mito, mas navegou sem embaraço os nebulosos mares de gênero e ideologia, e teve até tempo de dar um passeio depois de negacionismo e pós-verdade. Assim, com a cabeça mais arejada, resolveu finalmente voltar ao F.

O grande problema de Márcia era seu perfeccionismo: não bastava dar uma definição; ela precisava sempre dar um ou dois exemplos, sucintos, de modo que qualquer pessoa que a lesse entendesse já de cara o que queria dizer esse ou aquele termo.

E ela se preocupava também com o espaço, pois não queria truncar as demais palavras e a diagramação do dicionário: lhe agradava visualmente ver tudo mais ou menos com o mesmo número de linhas, ocupando mais ou menos o mesmo tamanho nas coluninhas perfeitamente justificadas. Fora que: se as pessoas já não liam bem nem tweets de 280 caracteres, o que dizer do que passava disso?!

Todavia, ater-se aos seus próprios ideais não lhe parecia nada fácil quando se tratava de fake news.; tentou começar comendo pelas beiradas:

Fake news (s.f.): do inglês; notícias falsas, não verificadas, disseminadas como informações confiáveis por meios de propagação em massa, tais quais a televisão, o rádio, e as redes sociais.

“É… por ora acho que está razoável. Vamos agora aos exemplos…”.

Ela poderia se limitar a algo como “As fake news têm potencial desastroso sobre a formação da opinião pública”, ou “É preciso combater as fake news, principalmente em anos eleitorais”, mas isso parecia incompleto e insuficientemente ilustrativo. Kit gay, os benefícios da escola sem partido, os malefícios cancerosos da tecnologia 5G, microchipagem por meio das vacinas, vacinas que causam autismo, reptilianos, Terra plana, … como escolher apenas um ou dois exemplos, que contemplassem e dessem um panorama verossímil do que são as ditas?!

Seus pesadelos tornaram-se cada vez mais intensos. Em algumas noites, o presidente lhe perseguia, montado em uma ema, tentando lhe forçar goela abaixo medicamentos sem eficácia comprovada; em outras, acompanhava, pela TV, uma espécie de filme de ficção científica, sobre um vírus fabricado em um laboratório da China, até que alguém lhe falava que se tratava, na verdade, de um documentário. Ah, e havia ainda aquelas nas quais alunos de universidades federais lhe importavam, nus, com as mãos nos bolsos, e aquelas em que lhe pediam para trocar a fralda de menininhas de cor-de-rosa – mas, quando ela abria os panos, via piu-pius em vez de periquitinhas.

Com a família e amigos já não conseguia dialogar claramente; se antes lhe admiravam por seu vasto conhecimento e linguajar culto, hoje já se perdiam entre referências à blogueiros e podcasters conspiracionistas.

“Mãe… tá tudo bem? O Seu Agenor, do sobrado da esquina, disse que te viu na rua, sozinha, falando coisas sem nexo, e ficou muito preocupado”. “Tsc… Ah, o Seu Agenor que vá mamar numa mamadeira de piroca!”. Mas, mal acabava de falar, e já se arrependia.

Até seu modo de digitar havia mudado; antes, usava habilmente todos os dedos das duas mãos (resquícios das aulas de datilografia na adolescência); agora, as mãos tremiam, e, involuntariamente, os dedos médios, anelares e mindinhos se dobravam; só ficavam para cima e para fora os indicadores e os polegares.

A máscara – item de proteção que até então julgava indispensável – lhe sufocava, e ela já não suportava mais ter que sair com ela. Recebia olhares reprovadores quando andava pelas calçadas, e tinha o ímpeto de mandar todos para a Venezuela quando lhe desagradavam.

“Meu deus, Márcia… quem é você?!”, chorava a mulher, desolada, olhando-se no espelho; ela havia se tornado irreconhecível para os outros e para si mesma. No lugar das feições, antes delicadas e amáveis, havia, agora, uma mulher com profundos sulcos e olhos febris, arregalados, próprios de quem havia perdido o juízo.

Coube à filha o envio dos manuscritos, acompanhados de um alerta cuidadoso: “Faltou apenas um verbete, do qual minha mãe não deu conta. Mas, por favor, lhes peço para que não insistam; quem sabe seja melhor pedir que um linguista mais cínico o defina – ou, ao menos, alguém com a terapia mais em dia”.

Depois desses tortuosos meses, a mulher ainda viveu mais alguns poucos anos; passou o resto de seus dias no sofá da sala, com o celular nas mãos, de link em link, compartilhado por aplicativos de mensagens, enquanto seus inúmeros tomos de dicionários – agora intocados – colecionavam pó.

A filha e a família ainda persistiram: “Vamos tomar um ar, Márcia… Ver o movimento lá fora…”. Contudo, ela recusava veementemente: “Não! Eu não preciso sair! A verdade está aqui dentro!”.

Em edições posteriores da obra encomendada, por respeito, lhe dedicaram um in memoriam; no entanto, Márcia – a querida e respeitada Marcinha de outrora – acabou sobrevivendo apenas como uma fofoca, eventual e efêmera, em algumas rodinhas de letrados.

Postado em BLOG, COMUNIDADE, GRADUAÇÃO, NOTÍCIAS, NOTÍCIAS EM DESTAQUE, UniBrasil.

UniBrasil Centro Universitário

Ver post porUniBrasil Centro Universitário

Deixe um comentário