Segundo Lugar Concurso de Contos: Ela Mereceu

Por Karen Vaz Siqueira Alvares

Ela mereceu

Terê Alves

Passava de duas horas da manhã no relógio da cozinha quando Lola engoliu o remédio junto de um gole de chá. Ela se esgueirou pela sala na ponta dos pés, na esperança de não acordar os irmãos que roncavam em colchonetes espalhados pelo chão. Antes de entrar, sorrateira, em seu quarto, a garota deu uma espiada pela fresta da porta; lá estava sua mãe, dormindo o sono justo de uma irmã ungida por Deus, junto daquele homem, o marido dela.

Com medo de que algum deles — principalmente ele — acordassem, Lola tratou logo de entrar em seu quarto e fechar a porta sem produzir ruído.

Sua mãe dizia que ela era mimada e os irmãos faziam coro. A adolescente, afinal, tinha um quartinho só para ela na pequena casa da família, na periferia de São Paulo. Não era grande, muito pelo contrário; mal cabia a cama e um baú de plástico onde a menina guardava seus poucos pertences. Mas ainda assim era um lugar só seu, enquanto os três irmãos mais novos dormiam amontoados na sala.

Só que havia um motivo para aquilo. E, no fundo, a mãe de Lola sabia qual era.

Por mais incrível que fosse, era o padrasto — o marido atual de sua mãe, que ela arranjara dez anos antes, depois que o pai da menina morrera, e com quem tivera outros três filhos — quem insistira para que a adolescente de quinze anos tivesse um quarto só dela. Afinal, ela era uma “mocinha”, e seus “moleques”, machos o bastante para viverem a vida dura e assim se tornarem homens.

Mas não era no bem-estar da enteada que o homem pensava.

Aquela noite, Lola arrastou o baú e com ele montou uma barricada na porta; não havia chave nem ferrolho que pudesse usar. Colocou todos os livros da escola ali para deixá-lo mais pesado, mas sabia que não ia funcionar se o homem realmente quisesse entrar. Mesmo assim, precisava fazer alguma coisa. E, se não adiantasse, pelo menos tinha tentado.

A cama gemeu quando a garota se sentou. Tomou mais um gole do chá. Era amargo, mas tinha que bebê-lo até o final: era o que a velha tinha dito, e aquela mulher sabia das coisas, contavam todas as outras na comunidade. Observou o baú demoradamente, com seus livros e seus trapos, imaginando, ingênua, que o pior já tinha passado. Enfiara o comprimido branco lá embaixo, o mais fundo que conseguira, e então engolira o segundo. Em seguida viera o chá. E depois…

Esperar.

Lola tentou dormir, mas foi em vão. Era só fechar os olhos que a sombra dele se projetava sobre seu corpo, a mão grande e suada tapando sua boca, pressionando mais e mais à medida que o homem entrava e saía do seu corpo. E doía, e doía. E ela ficava triste porque nem conseguia mais chorar, só ficava lá, encarando a luz da rua que se infiltrava pela janela e insistia em desenhar formas na parede sem reboco, sonhando com o dia que voaria para longe feito uma borboleta. Não era assim todas as noites, apenas quando ele bebia, mas o homem parecia visitar o bar com mais frequência a cada semana. E sua mãe nunca acordava com o barulho dos seus passos duros, nunca. Muito menos seus irmãos, com o sono ainda mais pesado.

Vai ver sua mãe não queria acordar, não de verdade. Vai ver ela fazia força para continuar dormindo.

E então Lola ficava sozinha na escuridão.

Ela achava que estava acostumada, mas aquela noite percebeu que não. Parecia a mais solitária de todas, aquela espera. Talvez porque, no fundo, Lola não estivesse tão sozinha; havia algo dentro da sua barriga, crescendo a cada dia, um lembrete constante das sombras que invadiam seu quarto e das formas de luz na parede. Ela não o queria. Ultrapassara limites que jamais imaginara para tirá-lo de lá, do lugar ao qual não pertencia. Ela era sozinha e sempre seria. Ninguém tinha o direito de invadi-la ainda mais.

Na comunidade, a menina descobriu que o que era tabu dentro do seu santo lar não era um segredo tão grande assim nas ruas. A palavra viajava de boca em boca entre as mulheres da periferia — as que tinham ouvidos para ouvir, pelo menos —, e todos os caminhos levavam ao endereço daquela velha. Havia um preço, claro. E Lola precisara roubar para conseguir o dinheiro: sabia que a mãe escondia do marido um rolo de notas que afanava da igreja, da doação dos fiéis esperançosos de um pedacinho do paraíso, e guardava num pé de meia, entre as tábuas soltas do estrado da cama da filha.

Se a coisa toda desse errado, a menina tinha um plano.

Ou pelo menos pensava que tinha.

Porque, um tempo depois do remédio e do chá, as dores começaram e tudo desmoronou.

Ela nunca sentira tamanha dor em toda sua vida. No começo, parecia apenas uma cólica menstrual, mas então o sofrimento só aumentou e logo ela teve que arrancar o lençol da cama e morder o tecido para não gritar. Não havia posição que desse jeito, nem deitada, nem sentada, de lado ou de bruços. Nenhuma. Era tudo dor, como se aquele ser que invadira sua barriga, filho do intruso que dormia no quarto ao lado, planejasse matá-la de dentro para fora.

A menina imaginava ter se precavido, com seu pacote de modess e as duas toalhas de banho que roubara do cesto de roupa suja, mas não havia o que barrasse aquele mar; logo, ambas estavam imundas, os absorventes jaziam inúteis num balde, e o sangue, imperativo, continuava a ansiar por sua liberdade. O lençol de cama, o travesseiro, as pernas e as mãos da garota se pintaram de vermelho vivo, muito vivo. O invasor tinha raiva.

Vermelho é a cor do inferno, sua mãe diria quando descobrisse. Cor do pecado. Cor do demônio.

Quando a dor foi demais para suportar, Lola enfim deixou o grito escapar. Gritou como se a dor explodisse através da voz. E não demorou muito para que a proteção da porta cedesse às investidas do intruso de todas as noites.

A sombra se agigantava no umbral. Porém, daquela vez, o homem recuou, enojado diante da cena à sua frente.

— MULHER! MULHER, VEM AQUI VER TUA FILHA!

A mãe adentrou o quartinho aos solavancos. A dor nublava a visão de Lola, mas a menina jamais esqueceria o assombro nos olhos da mãe. Sua figura imensa, postada à soleira da porta em toda sua glória, fez um compasso do coração da menina se perder.

— DEMÔNIA! PUTA! ASSASSINA! O QUE VOCÊ FEZ? O QUE VOCÊ FEZ?

A próxima coisa que Lola sentiu foi frio. A mãe a arrastou da cama pelos cabelos, atirou-a no chão de concreto do banheiro e ligou o chuveiro com o pino apontado para o verão, mesmo que o mês fosse agosto. A água gelada lavou o sangue do corpo da menina e penetrou em seus ossos. Seu corpo desaprendera o controle e só sabia tremer e sangrar. A mãe, ainda aos berros, ergueu o chinelo — sua figura apenas uma sombra abaixo da única lâmpada do cômodo — e desceu com força de encontro ao rosto da menina. A dor nem se comparava à que a garota sentia no ventre, mas a mágoa sobrepujara todo o resto naquele pequeno instante.

— Mãe! Mãe! Me ajuda!

— PUTA DO DEMÔNIO! ASSASSINA DE BEBÊS!

— Mãe! Mãe… foi ele, mãe, foi ele quem fez isso comigo! E VOCÊ SABE! VOCÊ SABE!

A mãe finalmente parou, o chinelo ainda no ar. O calçado caiu estupidamente de sua mão, estalando ao se deparar com a água do piso. O dissabor se estampava em sua face, os olhos marejados de agonia, desgosto e humilhação.

Por entre as pernas maternas, Lola divisou a silhueta do intruso. Seus irmãos se reuniam ao seu redor, assistindo em um silêncio reverente àquele escândalo. Será que se divertiam? Será que contariam o episódio no dia seguinte, na rua, para toda a vizinhança, zombando do desespero da irmã?

— Mulher… — o homem ameaçou. — Veja lá…

— Mãe… por favor… me ajuda…

Os lábios da mãe tremiam ao despejar suas próximas palavras:

— Filha minha não é assassina de bebês. Filha minha não é puta do demônio. Foi o demônio que botou isso no teu corpo, porque você — a mãe apontou entre os olhos de Lola, que mal se podiam enxergar através da cortina de cachos encharcados ocultando o rosto da menina — caiu em pecado. Vai morrer, seca e sem filhos, que é o que Deus reserva pra mulher que não sabe seu lugar, que tira a vida de um inocente. Não é mais filha minha. Se algo te aconteceu, foi porque mereceu.

A última coisa que Lola viu foram os pés da mãe — um deles ainda descalço — chapinharem no piso molhado até cruzarem a porta; o ódio e o rancor daquele estrondo ressoaram na alma da filha. A água vermelha escorria pelo ralo, levando consigo o invasor, mas também o que restava da menina. Por fim, exausta e desamparada, repousou a fronte no concreto ensopado e fechou os olhos, sozinha, mais uma vez, em meio à escuridão.

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